domingo, 21 de fevereiro de 2010

Corpo de trevas



Naquele dia em que a evidência saltou mais cedo da madrugada
floresceu no meu corpo o sobressalto.
Era Agosto, remara noite dentro por um rio escuro
embalsamado de medo e nas águas nocturnas vi-te boiar no
branco trágico do céu.
Desconhecidos enrolavam-te em mágoas, ciclones carcomiam-te
as plácidas lembranças dos desejos, suspiros moribundos
entoavam estrondosos no terror das expectativas.
Fazia já algum tempo que os meses entornavam uma espantosa
desolação sobre a alma, essa que orvalhada de simplicidade se
deixou enganar pelas mãos nodosas da fé.

Mãe,
quando te vi, estavas edemaciada de sombra,
olhar ulcerado na neblina, coração feito tormenta.
Lia-se em todas as esquinas a serenidade geneticamente exilada
nas garras ímpias da decadência.
Sonhos desfeitos espreitavam a falésia escarpada do inatingível.
Havia palidez inconsciente na existência e um clarão a
murmurar a névoa que não entendia.
Ordenhei a incompreensão, paralisei o desespero e falei-te sem nada dizer,
mas estavas já debruçada sobre a sedução venérea do degredo.
Degluti desabrigo e com a seiva íntima da coragem esculpi o
apelo que desmentisse a tua desistência.

Quis dizer-te naquele momento tudo o que o egoísmo queimou
no calor frenético dos dias. Mas o sofrimento audacioso
decapitava-te já a respiração
e sobre a fulgurante agonia desfaleciam léguas de ilusão.
Peguei-te e corri pelos escombros do destino até onde te pudesse
resgatar da catástrofe.
Senti como nunca o sedimento estéril do instante,
o equívoco intemporal dos desejos, o êxtase precário da eternidade.
De súbito o mundo parou.
A imobilidade segregou o hálito macabro do fim.
Morri nessa tarde na metamorfose estival das emoções,
submerso na tua ausência vitalícia.

Alberto Pereira

Poema do livro "O áspero hálito do amanhã"

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