
O poeta Alberto Pereira, vencedor do Concurso de Poesia,
“Ora vejamos” em 2008, ano em que editou o livro,
“O áspero hálito do amanhã”, venceu em 2009
a modalidade de Conto, com o trabalho “A última fotografia”,
dedicado a João Aguardela,
com quem conviveu meses antes de este ter falecido.
Nunca é demais recordar que o líder dos Sitiados,
foi mentor dos projectos Megafone, A Naifa e Linha da Frente,
tendo este último consistido, na interpretação de textos
de poetas portugueses por parte de várias bandas nacionais.
A modalidade de Poesia foi ganha este ano por Isabel Solano,
com o poema “Silêncios”.
FRAGMENTOS DO CONTO ´"A ÚLTIMA FOTOGRAFIA"
"Passo os dias estendido nesta cama, sei de cor tudo o que aqui acontece. O zumbir dos alarmes, o horário em que os médicos e enfermeiros me visitam, as auxiliares que todas as manhãs vêm de esponjas em punho e me esfregam de forma tão rápida que me sinto como um automóvel a ser lavado numa estação de serviço; a boca que fica muitas vezes suja, como uma fossa a coleccionar restos de comida. O creme gorduroso com que me massajam, o braço picado de fazer análises de rotina, a psicóloga que tenta salvar-me da depressão. Os exercícios que o fisioterapeuta me ensina e que não consigo fazer. A empregada de refeitório que repete as dietas que já me enjoam. A mulher desdentada que limpa o chão, o voluntário de bata amarela que sai de casa para o hospital porque ainda não acredita que está reformado. Conheço também este quarto. As duas camas separadas por um cortinado velho, o lavatório branco com a torneira cromada onde corre apenas água fria, as mesas-de-cabeceira com gavetas pequenas e as cadeiras de plástico arrumadas ao lado do armário. Conheço tudo isto e também Hafid, que nesta manhã de Outono quis imitar o ciclo das estações e partir da vida como as folhas que lá fora se desprendem das árvores.
Estendido no leito, junto à janela, está o velho fotógrafo. Tem a face pálida e os lábios roxos. No corpo o sangue parece ter sido sugado. Os membros esqueceram o movimento, os músculos suspensos sobre os ossos em breve ficarão duros.
Como sabem, ao princípio não simpatizei com ele, porque ninguém gosta que lhe chamem cobarde, senti até repugnância, mas com o tempo tudo mudou. Habituei-me à sua rotina. Levantava-se cedo, tão cedo que por vezes a cor negra da noite não se apagara do horizonte. Sobre o tampo extensível da mesa-de-cabeceira pousava a bacia de alumínio com água tépida, espalhava o creme no rosto e desfazia a barba. Em seguida saía do quarto para o duche matinal, regressava trinta minutos mais tarde e dava então início a um ritual que sempre me impressionou. Guardanapo à esquerda, tigela ao centro e seringa à direita. Quando puxava a camisola para cima, lá estava o tubo de plástico enfiado na barriga. Tirava-lhe a tampa, aspirava o leite com a seringa e em pequenas doses despejava o pequeno-almoço dentro de si. Descia depois até à praia para comprar o jornal e só regressava perto do meio-dia. O resto do tempo passava-o aqui, neste quarto, junto a mim."
"Quero tocar à campainha, mas não consigo. Ninguém aparece.
O céu está carregado de nuvens e pela escassa claridade da manhã adivinha-se que choverá em breve.
Que dia triste para morrer.
Quando olho para aquele canto, vejo Hafid, apresentando-me o mundo lá fora. Nunca espreitei pela janela, mas conheço todos os lugares para lá dela. Conheço-os, porque ele os relatou.
O mar do outro lado da estrada. A praia com conchas esmagadas junto à rebentação, as algas a flutuar ao sabor das marés, as pedras cobertas de musgo, o mexilhão agarrado às rochas junto à falésia. E as gaivotas, essas nunca param, ora no solo a disputar pedaços de comida, ora no céu a sobrevoar a costa. Até do bar sei o nome, “São Pedro”. A esplanada com mesas brancas e cadeiras de ráfia, o chão de madeira manchado pelo sal, o tubarão de borracha pendurado no tecto, o toldo transparente que desce quando o vento sopra com força. E os pescadores, esses matam as horas a lançar anzóis para as profundezas do mar, na esperança que um peixe justifique os momentos de solidão. Falou-me também de um homem que passa o dia na praia de pá em punho a tapar os buracos mais fundos, nunca percebi porquê, mas também nunca lhe perguntei.
Ao final da tarde debruçado sobre o parapeito da janela, Hafid fazia-me sonhar.
Falava do crepúsculo como um poeta.
“O sol desce ao ritmo de um caracol.
O céu está em chamas.
Os barcos ancorados como brasas vão-se afundando
na cor ardente do horizonte.
Desmaia sobre a água uma brisa fria,
tudo escurece lentamente.
A fogueira apaga-se, há apenas cinza no céu.
Chegou a noite.”
Depois fechava a janela e eu sabia que o dia tinha chegado ao fim.
Os meses passavam, as fotografias sucediam-se, as histórias eram cada vez mais interessantes. Tornei-me um viciado destes momentos, de ver o velho sentar-se perto de mim ao início da tarde, de o ouvir contar pedaços de uma vida que mais parecia um puzzle captado em vários lugares da terra. Mas quando ao puzzle apenas faltava uma peça, algo de estranho aconteceu.
Hafid recusou-se a mostrar-me a última fotografia.
O homem calmo deu lugar a outro que se transfigurou. Ficou irritado, diria mesmo que teve um ataque de fúria, o seu corpo tremeu, os olhos ficaram rubros, tão rubros que se via a agitação nas pupilas. A minha insistência para observar a derradeira imagem perturbou-o tanto, que a feição serena se desvaneceu por completo. Recusou-se a fazê-lo e saiu do quarto batendo a porta com violência. Só voltou ao anoitecer, sem que um murmúrio se ouvisse.
Durante um mês, deixei de sentir os cheiros da praia, a rebentação das ondas junto à falésia e até de imaginar as mulheres na areia a entregarem o corpo aos raios de sol. Apagaram-se as cores do crepúsculo porque a sua boca se fechou e passei a perceber que a noite chegava, somente porque a claridade desaparecia do quarto.
Mas há três dias, decidiu quebrar o silêncio. Sentou-se de novo junto a mim e abriu o álbum de fotografias como nos velhos tempos. Abriu-o precisamente na imagem que nunca me quis mostrar. Disse então:
- Esta foi a fotografia que arruinou a minha vida, foi a última que tirei já lá vão alguns anos. Ganhei com ela o prémio Pulitzer de fotojornalismo.
Observei-a atentamente, era medonha. “Via-se uma menina vergada sobre a terra seca, a figura esquelética de um corpo desnutrido, esgotado pela fome. Atrás dela, em segundo plano, a figura negra e atenta de uma ave à espera da sua morte.
Depois, sem que eu lhe perguntasse nada, Hafid começou a falar."
Alberto Pereira